Saturday, March 7, 2009

Digitalização do Contínuo

Carlos Pedro Gonçalves

O reino do digital impõe-se com a digitocracia sobre o contínuo. O contínuo matemático, irredutível ao contável, é negado como interdito, como ilegalidade perigosa.

Da matemática, é exigida uma logicidade logocentrada, uma redução reificante e aprisionadora que tenta reduzir o semântico ao sintáctico e, assim, estende a incompletude formal a uma semântica que não a possui.

A intuição matemática é substituída pela dedução fria, incapaz de escalar novos horizontes, porque não possui capacidade imaginativa, não explora a ideia matemática e a sua apreensão pelo matemático que a intui numa imediatez sensual produzida por uma síntese imaginativa, ideia, esta, por natureza, irredutível a um logocentrismo lógico, como o demonstrou Gödel.

Escalar novos horizontes… pensar para além das barreiras do código… actividades perigosas… incompatíveis com uma digitocracia alargada à própria actividade matemática. A linguagem formal deixa de ser somente um instrumento de organização discursiva e de formalização auxiliar à demonstração, para passar a ser um instrumento de controlo de pensamento.

De auxiliares abstractivos, a linguagem e o sistema formal passam a ser instrumentos de alienação do próprio pensamento matemático, que, para pensar o formal, vazio de semântica, perde o seu objecto de intencionalidade – o objecto matemático, em si mesmo, enquanto objecto abstracto de pensamento, o qual, como Gödel demonstrou, é irredutível ao puramente sintáctico, ao puramente lógico.

Digitalizar o contínuo matemático no discreto matemático significa abolir do pensamento um universo de formas pensáveis, para impor o limite do digital, útil a um esforço de mecanocracia computativa em que o instrumento do número abole o analógico e, assim, o próprio intervalo e o contínuo. Sem intervalo, sem contínuo, sem matizes, sem diferenças infinitesimais, sem espaços vazios pensados como espaços vazios porque contínuos de nada. Fim da différance para o fim da différence.

Ainda que diferentes, digitalizados, passamos a ocupar as mesmas casas nos códigos de barra em que nos tornamos, clones na nossa condição de escravos do dígito.

Teorema de Gödel mal interpretado para justificar que a própria noção de verdade matemática seja redutível a uma validade lógica, num primeiro passo para algoritmização da verdade, da geometria, do contínuo, do intervalo, do cinzento, do indivíduo enquanto indivíduo separado dos restantes, e não escravizado ao número… e não escravizado a uma máquina incapaz de imaginar, incapaz de inovar, incapaz de saltar para fora da tirania do sistema formal, ele próprio limitado em si mesmo, e desde logo, quando lidando com os próprios números e aritmética simples.

O fim do matemático (segundo alvo), assim como o fim do filósofo (primeiro alvo) são os dois primeiros passos para abdicarmos do nosso pensamento e daqueles sistemas naturais de homeostasia sistémica, pensáveis como anticorpos que nos protegem das ditaduras do formal e das máquinas enquanto fins em si mesmos.

No comments: